Publicidade:

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Rio 2016 : Das ruas ao tatame: Rafaela Silva, um diamante lapidado com pés no chão

Campeã olímpica na categoria até 57kg supera infância humilde na Cidade de Deus 

e desponta como melhor (e pior) exemplo para crianças da comunidade carioca

Naquele tempo ter chinelos era luxo. Para quem tinha um par, abrir mão dele para poder brincar descalça representava o risco real de voltar para casa com os pés no chão. Rafaela, moradora nova, virou vítima das circunstâncias. Passou um mês chorando para o pai, pedindo outras sandálias. A culpa não era dela! Os meninos da rua que a tinham roubado! Quando finalmente venceu Seu Luiz Carlos pelo cansaço, mal teve chance de aproveitar. Ficou de novo sem calçado. Apanhou em casa. E aprendeu na marra uma lição que moldaria sua personalidade.
- Eu gostava de soltar pipa, jogar bola... e eles roubavam minha linha, meu chinelo... Eu fiquei um mês inteiro chorando. Meu pai falou que era caro e não podia me dar. Fui chorando, chorando, ele deixou de comprar coisas para a casa, foi e me deu o chinelo novo. No mesmo dia fui brincar de pique-esconde e o levaram. Cheguei em casa, tomei uma surra. Aí aprendi a ser esperta aqui na rua também para sobreviver.

Rafaela Silva judô (Foto: Reuters/Toru Hanai)
Rafaela Silva, medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro

A necessidade de se impor fez de Rafaela Silva uma lutadora ainda criança. A agressividade aflorada nas brigas pela vizinhança foi disciplinada através do judô, e a menina que superou a pobreza em uma das comunidades mais violentas do Rio de Janeiro tornou-se campeã olímpica. Das ruas para o tatame, da Cidade de Deus para o mundo, um talento natural tão latente que resiste mesmo diante de uma postura considerada um tanto displicente para um atleta de elite.
Rafaela personifica extremos. Vai do pior ao melhor exemplo para os aprendizes do polo de Jacarepaguá do Projeto Reação, onde foi revelada - sendo descuidada com a alimentação e preguiçosa em relação aos treinos, mas tida como maior símbolo de sucesso de uma população marcada pela falta de perspectivas e estigmatizada pelas telas de cinema. A medalha conquistada nesta segunda (única que faltava no currículo da carioca), no tatame da Arena Carioca 2, a transforma em heroína não apenas da comunidade, mas também de um país inteiro. 
No caminho rumo ao pódio, a peso-leve (até 57kg) não deu chances para suas três primeiras adversárias. A semifinal contra a romena Corina Caprioriu foi cheia de emoção, e a brasileira levou a torcida à loucura com um wazari, já no golden score (morte súbita). A medalha dourada veio na vitória contra Sumiya Dorjsuren, da Mangólia. 
DA BRIGA DE RUA À DISCIPLINA DO TATAME
Seu Luiz e Dona Zenilda trabalhavam fora. Ele era entregador de pizza, ela vendia botijões de gás. Com duas filhas pequenas e arteiras, procuraram ajuda na associação de moradores para mantê-las ocupadas. Com uma lista de atividades em mãos, apresentaram as opções para as meninas. Raquel, a mais velha, quis fazer dança. Rafaela escolheu o futebol. 
O interesse da primogênita pelas artes se esvaiu quando viu o nível da turma. Todos estavam muito avançados. A caçula não pôde mostrar sua habilidade com a bola nos pés porque havia times apenas para meninos. Assim, as duas foram conhecer um tal de judô, marcado como segunda opção. Sabiam que era uma luta e, acostumadas a encararem uma boa briga tanto na escola quanto na rua, acharam que ali poderiam se dar bem. Mas não tinham real noção do mundo que poderia se abrir, de quão longe poderiam ir.
Rafaela Silva, judoca (Foto: Alexandre Durão / GLOBOESPORTE.COM)
Rafaela com Geraldo: técnico viu na carioca um diamante bruto

Geraldo Bernardes teve esta visão assim que as conheceu. Em 2000, o ex-técnico da seleção brasileira, com a experiência de quem levou atletas a quatro edições olímpicas, lançou um projeto social em Jacarepaguá para atender a comunidades carentes como a Cidade de Deus (CDD). As meninas passaram a treinar com ele e logo despontaram.
A primeira a se sobressair foi Raquel. Com 11 anos, tinha gosto por treinar e só saia da academia de noite. Rafaela, três anos mais nova, precisava de um empurrão extra para deixar as brincadeiras na calçada e vestir o quimono. Quando entrava no tatame, porém, mesmo sem o mesmo afinco da irmã, não ficava atrás nos resultados.
A percepção de que as duas poderiam chegar à seleção brasileira fez com que Geraldo expandisse seus cuidados. Exigiu que as brigas se tornassem passado. Se ficasse sabendo de algo, elas estariam fora do instituto. Arrumou uma bolsa de estudos para Raquel em uma escola particular, e ajudou – e muito – no custeio de despesas. Passagens, alimentação, inscrições em torneios. Como a família era muito humilde, era ele a fazer o investimento. Tinha certeza de que valeria a pena.
- Até pela idade apostei primeiro na Raquel. Mas as duas também competiam entre si, tinham aquela postura competitiva que é ótima para a evolução no esporte. Tinham a personalidade ideal para o esporte de alto rendimento. Quem mora em uma comunidade carente vive um sacrifício diário, vê mortes, há pouca comida. Isso tudo gera uma agressividade natural. No caso da Rafaela, além da oportunidade de transformar, ela tinha muita coordenação física, pulava muro, tinha uma envergadura grande e era canhota... Ela também é muito inteligente, pega rápido as informações sobre as adversárias – disse o treinador.
judô Rafaela Silva Raquel (Foto: Leslye Davis / The New York Times)
Rafaela e Raquel eram briguentas na infância: agressividade foi disciplinada (Foto: Leslye Davis / The New York Times)

Rafaela só passou a levar o esporte mais a sério quando a irmã, aos 14 anos, foi convocada para uma competição na Bolívia. Ela queria fazer como a mais velha, também queria viajar, rodar o mundo. Mesmo com apenas 11 anos, já sabia que era boa. Vencia todas as adversárias tão rápido que podia até brincar entre uma luta e outra na competição. Ouviu de Geraldo que seria preciso mudar.
Quando Raquel se viu grávida ainda na adolescência, Rafaela assumiu o protagonismo. Com a irmã, até então mais bem-sucedida, de resguardo – depois da maternidade uma série de lesões complicaria a carreira da primogênita -, a caçula foi obrigada a crescer. Em casa, quando o pai não estava, era ela que carregava nas costas os botijões de gás para ajudar a mãe. Nos treinos era chamada a atenção a todo o instante. Mesmo que fosse superior a todas as colegas, ela sempre tinha o que melhorar. Não bastava ser boa. Estava sendo lapidada para tornar-se a melhor do mundo.
Enquanto o filme Cidade de Deus tornava-se um sucesso mundo afora, com quatro indicações para o Oscar, a família Silva vivia a violenta realidade da região. Mesmo não morando mais dentro da CDD, visitavam com frequência os familiares que seguiram na comunidade. As meninas perderam a conta de quantas vezes encerraram as brincadeiras na rua devido ao início de algum tiroteio. Durante um período, uma boca de fumo instalou-se ao lado da casa da avó. Era comum ver policiais e bandidos trocando tiros por horas.
- A gente sabia que era perigoso, mas como a gente vivia naquele meio, via os caras armados, vendendo, tudo era normal. A gente não se assustava. Quando tinha tiroteio, todo mundo saia correndo desesperadamente, mas era algo que acontecia no dia a dia – lembrou Raquel.
- Quando a gente ia visitar a família do meu pai, era bem violento. A gente via droga, arma. Tem uns dois anos, vindo da festa de 15 anos da minha prima, tem uma parte lá na CDD em que as ruas são bem estreitas. Entrei, tinham uns meninos vendendo droga na esquina. Passei com o carro, vidro fechado, e um menino falou “Ih, é um carro desse que eu vou roubar para mim quando eu crescer”. Fiquei desesperada – contou Rafaela.
Felizmente a criminalidade não gerou nenhum dano mais grave à família das judocas. Não houve perdas, nenhum grande trauma. Só lembranças bem vivas sobre uma vida que não queriam para si: haviam sido educadas desde cedo para diferenciarem o certo do errado, e o judô só ratificara os valores passados pelos pais.
judô Rafaela Silva casa (Foto: Leslye Davis / The New York Times)
A entrada da casa da família na Freguesia, onde ainda moram os pais de Rafaela e Raquel: local passou por reformas e ampliações graças ao dinheiro ganho pelas irmãs através do judô (Foto: Leslye Davis / The New York Times)

Conforme a vida de atleta de Rafaela e Raquel foi tomando forma, os títulos se acumularam e os patrocínios surgiram, a vida da família melhorou exponencialmente. A rotina de luta, tanto das meninas quanto dos pais, no entanto, seguiu quase inalterada.
Seu Luiz e Dona Zenilda ainda trabalham duro. O pai recebeu uma Kombi de presente e hoje faz fretes a um preço médio de R$ 150 reais. A mãe agora tem uma vendinha e oferece aos moradores da região todo tipo de produto: dos mesmos botijões de gás que vendeu em tempos de vacas magras a alimentos e peças de moda íntima feminina.
A casa da família, no bairro da Freguesia, Zona Oeste do Rio, antes contava com apenas um quarto, dividido entre pais e filhas. Hoje tem um segundo andar, com outro banheiro e três dormitórios. Rafaela não mora mais lá, vive sozinha em um apartamento no Méier e tem um carro de dar inveja aos vizinhos. Mas na parede da casa em que passou a maior parte da vida, logo à direita da porta de entrada, estão dois dos símbolos de suas maiores conquistas: diplomas reconhecendo o mérito pelos ouros conquistados no Mundial júnior de 2008 e no Mundial sênior de 2013. 
Os dois quadros, emoldurados com orgulho em algum momento do passado, estavam cobertos por teias de aranha no dia em que o GloboEsporte.com visitou a residência. Mais um dos tantos contrastes que permeiam a vida da primeira mulher brasileira campeã do mundo no judô.
judô Rafaela Silva casa diplomas (Foto: Leslye Davis / The New York Times)
Diplomas e miniatura de quimono com teias de aranha (Foto: Leslye Davis / The New York Times)

DESCLASSIFICAÇÃO, RACISMO E DEPRESSÃO
Na caminhada rumo ao mais importante título de sua carreira, Rafaela passou por várias decepções. Pequenas, médias e grandes. Até chegar à seleção brasileira principal, a menina da CDD sobrava diante das adversárias da mesma idade e do mesmo peso. Mas as grandes competições costumavam render surpresas desagradáveis. Duas semanas antes de um Pan-Americano de judô, quebrou o braço. Em um Brasileiro, foi desclassificada ao aplicar um golpe com uma entrada com o pescoço no chão. E aí vieram as Olimpíadas.
Representante do Brasil na categoria até 57kg, a carioca chegou a Londres 2012 como vice-campeã mundial e quarta colocada no ranking. Era a primeira vez na história que o país classificava a equipe completa com 14 atletas, e Rafaela estava entre as apostas de medalhistas da Confederação Brasileira de Judô (CBJ). Ela tinha o status de quem havia desbancado Ketleyn Quadros, única mulher medalhista olímpica do Brasil na história da modalidade.
Na estreia, vitória sobre a alemã Miryam Roper por dois yukos. Uma das favoritas, a portuguesa Telma Monteiro, já havia sido eliminada. Pela frente, nas oitavas, o duelo seria com a húngara Hedvig Karakas. Estava tudo correndo bem até a brasileira usar um Kata Otoshi, técnica conhecida como catada de pernas, para conseguir um wazari. Na revisão em vídeo, a arbitragem não só retirou a pontuação como desclassificou Rafaela. Em questão de segundos o mundo dela desmoronou.
A reação imediata foi o choro, o desespero. Abraçou a técnica Rosicleia Campos e chorou ainda mais. Ninguém sabia como consolá-la no ginásio. Quando finalmente chegou ao hotel e achou que teria conforto nas palavras das pessoas amadas, centenas de notificações em suas redes sociais chamaram atenção. Rafaela abriu o Twitter e se revoltou. Pela internet, havia recebido todo tipo de crítica e insultos racistas.
- Tinha que lugar de macaco era na jaula, e não nas Olimpíadas, que eu era vergonha para a minha família. Tinha um comentário (dizendo) que eu estava gastando o dinheiro que a pessoa pagava de imposto para querer ganhar roubando. Respondi que eu pagava imposto também. (...) Da maneira que eu perdi já tinha doído bastante. Eu estava indignada, só queria minha família. Achei que ia ter incentivo, mas estava todo mundo me criticando. 
Rafaela Silva é eliminada no judô de Londres (Foto: Marcio Rodrigues / FOTOCOM.NET )
O primeiro consolo nos braços da técnica Rosicleia Campos 

Rafaela Silva Judô mundial (Foto: Reuters)
No Maracanãzinho, um ano depois da decepção em Londres, Rafaela deu a volta por cima com o título mundial 


Publicidade:  

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Publicidade :